terça-feira, 25 de outubro de 2011

Em tempo de Copa, nosso futebol anda quadrado...



Dia desses, fui surpreendida com uma entrevista com o Sócrates e o Casa Grande, num desses programas futebolísticos que passam à tarde. Fui surpreendida duplamente. Primeiro porque não sabia da recuperação do Doutor Sócrates. Achei que ele ainda estivesse amargando o pâncreas danificado no hospital e fiquei feliz em ver a sua volta às telas. Muito feliz, afinal, sempre fui fã do Sócrates.

Minha segunda surpresa se deu pelo fato de encontrar vida inteligente em um programa futebolístico. Já faz tempo que o discurso do futebol é um só: jogadores egocêntricos cometendo atentados à língua portuguesa e comentaristas esportivos comentando... o nada. Estrelismo de um lado, retórica vazia do outro.

Em meio a tudo isso, milhões de reais se esvaindo pelo ralo, em construções de estádios que talvez sejam demolidos após a Copa, a exemplo do que ocorre na África do Sul, e outros milhões engordando o bolso de dirigentes, patrocinadores de times e donos de canais de TV.

O nosso futebol anda quadrado já faz um bom tempo. Toda Copa ou Olimpíadas é a mesma coisa: o time masculino de futebol disputadíssimo, monopolizando os holofotes de toda a imprensa e metendo os pés pelas mãos. E o time feminino, sem patrocínio direito, jogando muito mais. Mas jogo feminino? Quem quer saber disso? Quem tá aí pro fato de que a Marta pode ser eleita a melhor jogadora do mundo pela 6a vez? Nahhh... O importante mesmo é acompanhar a "pegação" do Neymar, quantas namoradas ele tem, se ele cortou o cabelo, o filho dele que nasceu... Isso é muito mais importante, né?

Eu não costumo assistir a programas de comentários esportivos. Eles sempre me pareceram de uma inutilidade absurda. Mas o zap na TV cedeu à entrevista com o Sócrates e o Casagrande. E eu tive saudades de uma época em que se podia ter orgulho dos nossos jogadores de futebol. O programa deve ter sido surpreendente também para o apresentador, o Bob Faria, já que ele gaguejava sem parar, não sabia fazer perguntas inteligentes e ficou com cara de meu-deus-quê-isso. É o que dá se acostumar com a banalidade insossa da atualidade no futebol. Bob Faria parecia não estar preparado para a inteligência e autonomia de seus entrevistados. Sócrates e Casagrande literalmente roubaram a cena.

Dr. Sócrates nem parecia ter recém saído do hospital. Junto com o Casagrande, os dois relembraram os tempos da Democracia Corintiana. E eu, que sempre fui cruzeirense e nunca torci prá outro time nenhum, confesso que tive um naco de inveja, respeito e admiração pelo Timão depois dessa entrevista. Eu não conhecia em detalhes a Democracia Corintiana.

No início da década de 1980, eu era uma garotinha de 5 anos e morava em Brasília. Apesar da tenra idade, lembro-me de hospedar gente na nossa casa, tios que viajaram à capital para participar dos discursos e das manifestações pelas Diretas Já. Eu não sabia o que era aquilo, mas sabia que era algo importante pro país, já que muita gente gritava pelas janelas, buzinava, aparecia na televisão e todas elas falavam a mesma coisa: Diretas Já!

Sempre gostei de manifestações políticas. Bem ou mal, elas reúnem um grupo de pessoas em torno de um objetivo comum e dão aquela noção, mesmo que passageira, de que a gente pertence a uma coletividade. E acho que, hoje, as pessoas andam muito individualistas. Tá, sempre foram... Mas não vejo mais essas mobilizações coletivas que faziam a gente pensar no outro como alguém que pudesse ser como nós.

Enfim. Dr. Sócrates e Casa Grande estavam lá. Pedindo Diretas Já! E eu também estava, batendo panelas na janela de nosso apartamento, ao lado de minha mãe e meus irmãos, também pedindo Diretas Já!


Na entrevista, Sócrates disse muitas coisas pertinentes. Uma delas é que o "campo de futebol é o melhor palco para a política". Num país tão grande e diversificado como o nosso, o que une não é a língua nem a religião, mas o amor ao futebol. Em qualquer lugar, se houver uma bola e duas pessoas, elas vão interagir, driblando daqui e ensaiando passes dali.

Sócrates tinha esse conhecimento na época. E fez questão de usá-lo, ao contrário de muito marmanjo que se diz jogador de futebol hoje em dia.

Na Democracia Corintiana, todos tinham direito ao voto. O técnico era escolhido ou destituído por votação dos jogadores e da equipe, inclusive os massagistas ou o faxineiro do vestiário. Tudo era decidido conjuntamente.

Na hora da comemoração, os jogadores se abraçavam porque sabiam que o gol era o resultado de um trabalho coletivo. Hoje, as estrelas de futebol empurram seus colegas para aparecerem sozinhos na telinha, tirar foto e para pedir música. A música, aliás, é sempre um breganejo, funk ou axé. Eu sonho em ver, um dia, algum jogador de futebol inovando e pedindo uma sinfonia do Beethoven, uma ópera de Verdi ou até mesmo uma modinha do Zé Coco do Riachão...

Sócrates e outros jogadores de verdade comemoravam os gols com o punho esquerdo levantado, um símbolo claro contra a Ditadura. Hoje, "nossas estrelas do futebol", como a Fátima Bernardes faz questão de frisar, comemoram com dancinhas estúpidas, coreografias primárias ou com as mãos juntas, formando coraçõezinhos meigos e vazios, como seus cérebros.



A gente sabe quem casou, quem descasou, quem saiu com travesti, quem matou a amante, quem teve filho, quem pintou o cabelo, quem comprou um porche... Mas não sabe que utilidade tem uma estrela do futebol para a nossa sociedade nos dias de hoje.

Nossos atuais "jogadores de futebol", seus técnicos, dirigentes, conselheiros, os presidentes dos clubes, a CBF, a FIFA... Enfim, a classe futebolística, hoje, é a nossa "nobreza" ou o nosso "clero" da idade média. Um grupo de pessoas que sai muito caro aos nossos bolsos, que a gente não sabe prá quê serve, mas não tem coragem de peitar. Pelo contrário, somos convencidos de que a coisa é assim mesmo e nós devemos não só sustentar esse aparato todo como admirar a realeza.

"Gol". Você poderia dizer que essa é a obrigação dessa gente. Fazer gols para o nosso time. Talvez eu seja muito exigente por achar que isso é pouco. Também acho pouco as celebridades do futebol doarem parte de seus ganhos para instituições filantrópicas. É muito pouco diante da oportunidade e da responsabilidade que a fama traz para eles.

Dar tanto espaço na mídia a quem vem ao mundo a passeio é banalizar a nossa existência.

Não quero saber se o Ganso comeu gelatina de cereja no almoço ou se o Robinho tirou o brinco da orelha. Quero que essa gente assuma sua responsabilidade social e use o espaço que tem na mídia para mudar a realidade à sua volta.

Isso é algo que TODOS NÓS, jogadores de futebol ou não, deveríamos ter em mente, afinal, o nosso trabalho não é importante. O importante é o que a gente faz com o nosso trabalho. E aqui vai um exemplo de como até a arte, considerada por muita gente como uma coisa menor, uma frivolidade inútil e sem importância, pode mudar a realidade das pessoas.


Sinto falta de jogadores de futebol de verdade, como o Sócrates. Aqueles que, além de gol, mexiam com a nossa forma de pensar e de agir no mundo. Meu consolo, por enquanto, é a atuação do Romário no congresso. Algo que, confesso, me surpreendeu bastante, já que eu o considerava uma "estrela do futebol" até pouco tempo atrás.

Mas eu gostaria muito que os jogadores pudessem dar seu recado em campo também. Sem precisar esperar a aposentadoria, nem migrar para o Plenário de Brasília.

E gostaria também que o meu time, o Cruzeiro, respondesse à palhaçada empreendida pelo Zezé Perrela com a adoção de uma Democracia Cruzeirense, nos moldes da extinta equivalente corintiana.

Aliás, esse me parece um ótimo momento para que os jogadores, de todos os times brasileiros, deixassem de ser estrelas mimadas e começassem a agir como jogadores de futebol de verdade. Afinal, a Copa vem aí. Nada melhor que um palco gramado para a denúncia e a manifestação da opinião pública contra a corrupção, contra os interesses da mídia corporativa, contra os interesses dos grandes latifundiários, das empresas de mineração e de perfuração de petróleo...

Enfim, Diretas, sempre! Valeu, Dr. Sócrates.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O louco



Tal qual uma ponte suspensa no meio do nada, o sujeito perambulava pelo acostamento, vindo de lugar algum e em direção à lugar nenhum. Nas costas, a trouxa mal-feita de um passado refeito e desfeito dezenas de vezes. Em cada porto, uma história, uma identidade, uma família. Lembranças deixadas para trás, como uma forma de compensar a falta de um adeus, um até-logo-quem-sabe-um-dia. Pouco importa, a aflição é de quem fica. Aquele que parte, ainda que sem rumo, leva consigo o movimento das pernas: pendular. E uma ideia torta de que não se pode parar de andar, senão o mundo acaba.

Por não saber o que fazer, ele pegou a estrada mais uma vez. Não demorou muito, um cão amarelo passou a segui-lo e acabou sendo adotado. Em pouco tempo, a barba cresceria novamente até o peito, os cabelos desceriam até o ombro e a pele se tornaria ferruginosa. O homem voltaria a ser um bicho ao olhos de outros seres da sua espécie, mas um ídolo para o cachorro. 

Comida, Deus dá. Mesmo a quem não acredita n'Ele. Depois de tantos séculos, a caridade ainda não havia saído de moda. E pouco importava a religião. Com base na teoria de que o Senhor, caso existisse, deveria ser poliglota, certamente irmãzinhas e irmãozinhos haveriam de estender um pedaço de pão ou um naco de carne vez por outra. De que mais o corpo precisa?

Banho. 

Isso sim, ficaria à mercê das vontades divinas e dos registros celestiais. Por sorte, era verão e as tardes sempre terminavam com uma pesada chuva. Se quisesse, poderia até tomar banho em uma jacuzzi improvisada na banheira antiga, de louça, de uma borracharia.

Ele quis.

E, por isso, passou a tarde sondando o dono da borracharia e seu ajudante, que atendiam um motorista de caminhão. Os homens perceberam a observação insistente da figura maltrapilha, acompanhada pelo cachorro preso a um barbante. Então, o borracheiro permitiu que o ajudante levasse uma refeição, que foi aceita e devorada sem uma única palavra.

Mas depois do prato de caridade, homem e cão continuaram plantados ali. O líder da matilha cutucou os dentes, brevemente, provendo uma parca higiene bucal, e voltou para a análise meditativa da borracharia, seu dono, o ajudante e a banheira.

O borracheiro e o ajudante se perguntavam se não era suficiente a comida e o que mais aquele homem queria. Resolveram deixar prá lá. 

A tarde caía e o homem permanecia do mesmo jeito, de pernas cruzadas debaixo do eucalipto, à beira da estrada, com o cão dormindo ao lado. O borracheiro começou a perder a paciência e cogitou enxotá-los dali. Mas o ajudante se adiantou e foi lá, ter uma palavra com o viajante.

Perguntou o nome e ouviu: Antônio. O ajudante acreditou e, à medida que fazia perguntas, não imaginava que em vez de respostas o que obtinha eram informações criadas na hora, um avatar, o desenho de mais um dentre tantos personagens que aquela criatura assumia ao longo de sua indecifrável existência.

Pro ajudante, Antônio e sua história bastavam. "Um pobre coitado, alcoólatra, largado pela mulher, odiado pelas três filhas. De Itamonte. Ferrador de cavalos." Pro borracheiro desconfiado, o relatório não fez muita diferença. E a pulga continuou atrás da orelha. 

O cão despertou de súbito e se coçou todo. Depois bocejou, rodeou o próprio rabo umas três vezes e deitou-se novamente. 

Deu a hora de ir embora. O borracheiro fechou o estabelecimento com um grande cadeado, sem tirar os olhos de Antônio. Em cima de suas cabeças, o céu ameaçava desabar. O rapazinho teve dó e convenceu o chefe a deixar o pedaço de uma lona com o andarilho. "Vai ser mais útil prá ele do que prá gente". 

O borracheiro fez a concessão e eles deixaram a lona aos pés do homem antes de entrar no carro, dar a partida e encerrar o expediente.

Antônio, Geraldo, José, Aquiles, Amadeu, Donizeti, Hélcio ou sabe-se lá quem deixou a lona de lado e manteve os olhos fixos na banheira encardida que jazia do lado de fora da borracharia. Até que ouviu um "tec". Olhou pro lado. Outro "tec". Sobre a lona, estatelavam as primeiras gotas do dia. "Tec", "tec". 

Ele tirou a roupa. 

Protegido debaixo da árvore, o cão observava o homem entrar na banheira como veio ao mundo: sabiamente louco.